Olá pessoas de Carlotas!
No dia 19 de maio comemoramos o dia do orgulho agênero. Temos a alegria de compartilhar uma conversa que tivemos com Dani Conegatti, uma pessoa não binária transmasculina. Nela, Dani trouxe o conceito de agênero, a diferença entre pessoas agênero e não binária, os desafios e algumas ações que nós podemos ter na nossa rotina com o objetivo de respeitar a forma como se colocar no mundo.
1) Carlotas: Olá Dani. Queremos começar agradecendo por você ter topado esse papo. E já passar a bola para você pedindo que se apresente para quem nos lê.
Dani: Eu que agradeço o convite, é sempre uma alegria contribuir com a Carlotas e construir uma história com vocês!Bom, meu nome é Dani Conegatti, atualmente estou professor na Universidade Federal de Pelotas, ministro cursos e palestras para empresas e espaços educativos sobre gênero e sexualidade, trabalho com educação e sou uma pessoa não-binária transmasculina.
2) Carlotas: No dia 19 de maio é o dia do orgulho agênero. Gostaria que você nos ajudasse a entender melhor sobre esse conceito. O que é ser agênero?
Dani: É muito complicado definir identidades que se colocam como refratárias aos binarismos de gênero. A própria ideia de “definição” parece que não fica bem aqui. Como definir identidades que buscam, justamente, escapar às definições tão próprias do mundo binário? O que posso dizer, sobretudo considerando que não me percebo como uma pessoa “agênero”, é que esta é uma identificação que faz parte desse rol de formas de expressão e visões de si que resistem às ideias limitadas de feminino e masculino. Em teoria, é uma (des)identidade que busca negar os próprios gêneros, afastar-se deles. Pesquisei um pouco sobre a bandeira, porque acho fascinante a história das bandeiras, o que elas buscam representar. Descobri que a bandeira “agênero” foi criada por uma pessoa chamada Salem, que na época utilizava o Tumblr. Segundo esta pessoa, as listras horizontais pretas se propõem a simbolizar a ausência de gênero (uma escolha que considero interessante, porque, dependendo, o preto pode representar, também, a junção de todas as cores, não é mesmo?). As listras cinzas remeteriam a uma ausência apenas parcial, e o verde, por fim, representaria a cor da identidade “agênero”, em oposição aos tradicionais rosa e azul, tradicionalmente associados ao feminino e ao masculino.
3) Carlotas: Qual a diferença daqueles que se identificam agêneros para os não binário?
Dani: É uma questão bem complexa, pois envolve duas correntes de pensamento. Temos a transgeneridade como a base que englobaria todas as visões de gênero que se colocam fora da cisgeneridade. Há pessoas que dizem que dentro desse guarda chuva há outro, o da não-binariedade, que embarcaria as identidades agênero, demigênero, gênero fluído, etc. Nesse sentido, as pessoas podem, ou se reconhecer como não-binárias, ou atribuir para si uma identificação que estaria dentro da não-binaridade. No entanto, há outra corrente que defende que cada nomenclatura define uma postura distinta dentro da transgeneridade. Desse modo, a pessoa não-binária se colocaria no mundo de forma a “desafiar” os binarismos de gênero, enquanto quem se define como “agênero”, por exemplo, apostaria na própria negação dos binários. Há, de fato, aí, uma diferença de visões que, na prática, isto é, entendendo o gênero como uma prática, complicam a distinção entre uma expressão de gênero e outra. Isto porque, da forma como constituímos a sociedade, o gênero está atrelado aos binários, isto é, ele é sustentado pelos binários. Coloca-se então o desafio: é possível produzir gênero negando o próprio binário, isto é, desfazendo-se de visões do que é masculino e do que é feminino? Estamos nesse processo de construção. É muito difícil se colocar no mundo sem remeter a algum gênero ou expressão de gênero. Essa questão teórica, diriam algumas autoras e autores, inviabilizaria a prática “agênero”, ou seja, se colocar no mundo sem qualquer expressão de gênero. Eu percebo mais como um desafio a ser superado por quaisquer expressões de gênero que percebem as limitações muitas vezes violentas dos limites entre o feminino e o masculino.
Portanto, há pessoas que entendem que o “agênero” está no guarda chuva da não-binaridade e tem pessoas que entendem que são questões distintas. A meu ver, o mais importante é entender que esse é o ponto de partida, no sentido de que nenhum dos binários satisfaz a quem se coloca no mundo como refratário a eles, nenhum deles expressa, por exemplo, quem eu sou e como eu quero me colocar no mundo.
4) Carlotas: Quais são alguns desafios encontrados por pessoas agêneras?
Dani: Posso falar como uma pessoa não-binária, apenas, mas imagino que, em se tratando de colocar-se no mundo de forma “agênera”, o grande desafio seria como negar os próprios gêneros. Em termos práticos, no entanto, imagino que pessoas não-binárias e pessoas agênero tenham experiências por vezes próximas, por vezes distintas. Esta é uma questão muito complexa de ser respondida, porque boa parte (senão todos) dos desafios que vivemos têm muito mais a ver com o gênero que nos foi designado no nosso nascimento do que com “ser não-binário” ou “ser agênero”. Eu, por exemplo, fui educado e tratado (e ainda sou) como mulher. O meu maior desafio é fazer as pessoas levarem minha identificação a sério. É ter dignidade. Toda vez que uma pessoa me chama de “ela”, ou usa meu nome de registro, ou me trata como uma “mulher”, isto é, me percebe como mulher, me destitui de minha dignidade. E esta é uma luta diária, porque todos os dias passo por isso. É como se, o tempo todo, as pessoas estivessem dizendo: “sua identidade não é sua, você não tem o direito de se colocar no mundo do jeito que você quer, uma vez que eu defino quem você é, minha percepção, minhas vivências”. Considerando este modus operandi social, toda a vez que busco desafiar a visão das outras pessoas sobre mim, recebo violências das mais variadas. Esta é, no entanto, a minha experiência enquanto uma pessoa transmasculina não-binária que é vista pelo mundo como uma mulher cisgênero. Pessoas que assumem outras identidades e são vistas pelo mundo de outras formas vão ter experiências distintas, então, realmente não posso falar por toda uma identidade, sobretudo porque ela não é aquela que me representa.
5) Carlotas: Como aliadas, quais são ações que podemos fazer para aliviar esses desafios?
Dani: Quando falamos de superar as opressões de gênero, ações individuais, ainda que importantes, não são suficientes. Precisamos de políticas públicas, de grandes instituições lutando pelas nossas pautas, de proteção jurídica, de legislação adequada, de acesso a uma educação para gênero e sexualidade que deixe de lado o cinismo da visão “escola não é lugar para se falar de gênero” quando, na verdade, a escola é uma das instituições que mais perpetuam violências de gênero.
No entanto, focando no individual, e falando em termos bem simples, você se torna um/a aliado/a quando dá o direito da outra pessoa definir a si mesma. Não assumir que você sabe quem é a pessoa que está na sua frente, que você ou a sua percepção são capazes de definir a identidade da outra pessoa. Ouvir mais do que falar. Assumir que as suas experiências são limitadas, e que, ao impor a sua visão de mundo, você está suprimindo outras visões possíveis. Porque, ao fim, a luta de gênero é esta: uma luta por desfazer as amarras que nos atrelam a visões limitadas de nós mesmas/os, das outras pessoas e do mundo à nossa volta. Assumir que é da mulher a responsabilidade por educar uma criança é limitar a existência das mulheres. Assumir que eu sou uma mulher porque a sua visão do que é fenotipicamente ser uma mulher me associa a ela é limitar a minha existência. Assumir que apenas mulheres engravidam é limitar a existência de corpos com vulva e capacidade reprodutiva que gestam, implicando na dificuldade de acesso por pessoas transmasculinas ou por homens trans a diversos direitos já conquistados pelas mulheres. No fim, é a visão limitadora do mundo dos gêneros que produz toda a violência que sofremos. Então, ao não limitar sua visão individual, você já está contribuindo para um mundo melhor. No entanto, esta tem que ser uma prática diária. Uma filosofia de vida. Um modo de existência.
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>> Artigo postado originalmente em 19 de maio de 2023 e repostado para o dia do orgulho agênero.