A frase “a vida presta” foi dita pela atriz Fernanda Torres. Ela usou essa expressão para celebrar a indicação ao Globo de Ouro e ao Oscar. E, mesmo concordando com a Fernanda, eu senti um grande desejo de entender um pouco mais como essa “frase-celebração”, um tanto quanto poética, ganha força e sentido para as pessoas. (Foto acima: AP Photo/Bruna Prado).
A primeira reflexão que faço é que a vida não se revela como um mapa traçado com setas indicativas, mas como um fio que se entrelaça sem que possamos ver seu desenho final. Tim Ingold, em Estar Vivo, nos lembra que “existir é estar em movimento”, e talvez seja justamente essa incerteza que dá à vida seu significado mais fascinante. Como quem borda sem riscar previamente o tecido, seguimos costurando os dias, confiando no próximo ponto.
“Viver é conviver com o inacabado”, escreveu Maria Zambrano. Se tudo fosse lógico e previsível, seríamos máquinas autoprogramadas, não humanos. O que nos move é esse desejo de compreender, mesmo sabendo que nunca saberemos tudo.
Há algo de libertador em aceitar que não temos todas as respostas. Simone Weil nos alertou que “a atenção é a forma mais rara e pura de generosidade”. Olhar para a vida sem exigir explicações imediatas é um ato de entrega, um salto no vazio que nos ensina a confiar na queda. E, quando a razão não consegue explicar com profundidade o que sentimos e vivemos, o nosso corpo é capaz de expressar. Como disse Hannah Arendt, “o mundo é criado entre os seres humanos, algo que está entre eles e fora de cada um”. E a vida que presta é isso: estar nos espaços entre as coisas e as pessoas sem precisar caber, viver a imprecisão, abandonar a necessidade de destaque e de controle.
“Sou feita de retalhos”, escreveu Clarice Lispector. A vida também é. Cada dia é um novo movimento que não controlamos inteiramente. Nosso desafio? Tentar capturar e aprender com o instante. Mas o instante, sempre fugidio, nos escapa. E, ainda assim, insistimos. Tim Ingold nos convida a perceber que “a vida é um fluxo, não um estado”. Enquanto respiramos, estamos em movimento. Não somos seres prontos, mas em construção. Não somos pessoas estáticas, mas tudo o que acontece é o que passa por e entre nós.
Se a vida fizesse sentido absoluto, qual seria a graça? Se soubéssemos tudo sobre o que nos aguarda, o que restaria de encantamento? Como disse Bell Hooks, “o amor é um ato de vontade”. Amar a vida é querer estar nela apesar da sua imprevisibilidade. A vida presta porque ela não se dobra à nossa compreensão. Se fosse simples, já teríamos esgotado o desejo de vivê-la.
Sigamos, pois, na incerteza, dançando, escrevendo, respirando. É nesse não saber que mora tudo o que presta. A vida presta porque é uma ventania que bagunça nossos planos, uma maré que leva e traz sem pedir permissão, uma trilha sem mapa onde o próximo passo se revela apenas quando pisamos. Presta porque nos convida a buscar, errar, tentar de novo. Porque é feita de instantes fugitivos que se tornam eternos na memória, de danças improvisadas sob céus imprevisíveis, de palavras que se desenham no papel antes mesmo de sabermos o que queremos dizer.
A vida presta porque, no fundo, ela nunca se explica por inteiro — e talvez seja exatamente por isso que vale tanto a pena ser vivida.
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