No dia 06 de dezembro de 1989, na École Polytechnique de Montreal, no Canadá, um homem chamado Marc Lépine separou os homens das mulheres na sala de aula, insultou e acusou as mulheres e o feminismo por atacar os homens. Matou 14 mulheres e cometeu suícidio. Deixou uma carta escrita e nela, responsabiliza as mulheres pela destruição dos valores da sociedade. Este fato provocou uma mobilização internacional para que os homens se mobilizassem pelo fim da violência contra a mulher.
Comecei meu trabalho com homens bem pouco tempo depois. Mas não foi com homens que comecei. Foi com as mulheres e as travestis. Foi com elas que comecei a ver a necessidade de abordar os homens para o uso do preservativo e para a diminuição da violência. Comecei a fazer pesquisas e intervenção, principalmente por causa da transmissão da AIDS. No começo de meus trabalhos com homens, percebi a vida desértica de muitos deles em relação a demonstração de sentimentos e emoções. Uma aridez emocional causadora de muitos problemas. Sequelas herdadas de um machismo estrutural.
A primeira pessoa a se prejudicar com essa postura é o próprio homem. Procurei estudar a mim mesmo, o quanto também estava impregnado por tal posição. Descobri muitas coisas em mim que precisam ser descartadas, para também ajudar outros homens. No começo tudo era muito novo. Para construir uma sociedade verdadeiramente igualitária, é fundamental conscientizar os homens sobre o seu papel.
Ao longo dos anos, as mulheres têm lutado por direitos e igualdade em diversos aspectos, conquistando avanços significativos. No entanto, ainda existem desigualdades estruturais que precisam ser superadas, e a conscientização dos homens é essencial nesse processo.
Chamar os homens para uma reflexão foi super estratégico, porque eu não tinha a intenção de culpá-los, chamá-los de vilões e algozes das mulheres. E essa foi a chave que deu certo. Comecei a trabalhar com os homens em sindicatos, empresas, em situação de rua, encarcerados, compreendendo a dinâmica da construção dos corpos masculinos e das identidades masculinas.
Cheguei a um divisor de ações:
Desenvolver o trabalho sobre masculinidade e sexualidade ou abordar o tema da violência masculina contra a mulher?
Não foi uma decisão simples, porque os dois temas estão intimamente relacionados. Decidi trabalhar com o que, infelizmente, estava muito presente nos noticiários, ou seja, a crescente violência contra as mulheres. O tema é tão complexo que procurei conhecer outras experiências. Visitei alguns projetos em vários países. Fiz um apanhado de possibilidades, e fui paulatinamente, testando a metodologia e aprendendo a cada nova experiência.
E aprendi que uma das primeiras questões a serem abordadas é a desconstrução dos estereótipos de gênero. Desde cedo, meninos e meninas são influenciados por uma sociedade que impõe papéis específicos baseados no gênero, atribuindo características e responsabilidades diferentes. É muito importante trabalhar com a educação dos educadores e dos educandos. Os homens são ensinados a serem fortes, dominantes e provedores, enquanto as mulheres são associadas à sensibilidade, cuidado e tarefas domésticas. Esses estereótipos limitam as possibilidades de expressão e desenvolvimento de ambos os gêneros, perpetuando a desigualdade.
Sim, a educação é o caminho para a transformação. Com a Lei Maria da Penha, veio a possibilidade de mudar o caráter punitivo, para educativo. Com todos os avanços jurídicos, encaminhar homens para o processo reflexivo, é o caminho mais acertado. Acertado, mas ainda muito longe de ser concretizado porque exige muito esforço em criar equipes reflexivas capazes de facilitar um grupo. O processo reflexivo é baseado na ação de conscientizar os homens sobre a importância de quebrar esses estereótipos.
Contribuímos para a promoção de uma sociedade mais igualitária em que todos possam exercer seus talentos e interesses sem serem aprisionados por normas pré-determinadas. Mas esse processo não é de fora para dentro. É de dentro para fora. Então, é necessário facilitar que os homens busquem essa auto conscientização. Os homens são encorajados a desenvolver habilidades emocionais, a cuidar de si mesmos e dos outros, a serem parceiros e pais presentes, e a se engajarem nas tarefas domésticas de maneira equitativa.
O processo reflexivo para homens autores de violência contra a mulher inicia quando começam a sair da dualidade vítima-agressor, quando deixam de procurar um culpado para a situação da violência e começam a criar um comportamento de responsabilização. A violência contra a mulher não é uma questão isolada ou individual, mas sim uma manifestação dos desequilíbrios históricos de poder entre homens e mulheres. É um problema estrutural que precisa ser abordado de forma coletiva, com a participação ativa de todos e todas na luta por igualdade de gênero.
A responsabilização dos homens pela violência contra a mulher envolve reconhecer o papel que muitos homens desempenham na perpetuação dessa violência, seja através de atos diretos ou indiretos. Isso significa que os homens não podem se eximir dessa responsabilidade, alegando que a violência contra a mulher é um problema exclusivo das mulheres ou que não podem fazer nada para combatê-la.
A responsabilização dos homens não se resume apenas ao cumprimento das leis e à punição dos agressores. É necessário um trabalho educativo e de conscientização que promova mudanças nas mentalidades e comportamentos masculinos, desconstruindo os estereótipos de masculinidade tóxica que são muitas vezes associados à violência contra a mulher.
Nas atividades propostas e dinâmicas, os homens são convidados a assumir a responsabilidade de se educarem sobre a igualdade de gênero, de questionar e desconstruir comportamentos e atitudes machistas, e de serem aliados das mulheres na luta contra a violência. Isso implica em reconhecer a importância de ouvir e acreditar nas mulheres quando elas denunciam situações de violência, além de apoiá-las e encorajá-las a buscar ajuda.
A responsabilização dos homens pela violência contra a mulher é um passo fundamental para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. É um esforço que deve ser feito em conjunto, homens e mulheres, para que a violência seja erradicada e para que todas as pessoas possam viver de forma segura e livre de violações dos seus direitos. Coordeno a execução de projetos para homens desde antes da Lei Maria da Penha no ABC paulista. Aprendi que o caminho da igualdade e da equidade é também tratar estes homens autores de violência contra a mulher, com aquilo que justamente, eles não usaram em uma situação de conflito, com empatia, respeito e dignidade. Atualmente, coordeno trabalhos com homens encarcerados no CDP – Centro de Detenção Provisória de Mogi das Cruzes, no Fórum da Penha na cidade de São Paulo, no Fórum de Peruíbe, no Fórum de Taquaritinga.
Na cidade de Osasco onde a Prefeitura é responsável pelo serviço de responsabilização para homens autores de violência contra a mulher, entre outras responsabilidades no enfrentamento à violência contra a mulher. Assessoria em empresas privadas que queiram desenvolver masculinidades e novos repertórios de gênero. Em escolas capacitando educadores e educadoras sobre Masculinidades e Educação em Gênero.
Participar deste time de Carlotas tem sido um espaço de muita troca. De muitos encontros felizes e transformadores. E espero que este dia 06 de dezembro, possa ser um dia de conscientização de homens sobre o seu papel diante da epidemia da violência contra a mulher. Podemos, nós homens, atuar, romper com a omissão, silêncio, cegueira e construir um mundo mais seguro para mulheres e para nós mesmos.
Podemos comemorar que há mais homens que cuidam de si, das crianças e das mulheres. Precisamos multiplicar estes bons casos para que todos os homens possam ter essas referências de comportamentos.
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Este artigo foi postado em 3 de dezembro de 2023, repostado em 5 dezembro de 2024.