Compartilho aqui uma conversa que tivemos com alguém que conhecemos em um de nossos encontros com as escolas na Diretoria Regional de Educação (DRE Butantã). Daniel é um cidadão inquieto e curioso, professor da rede municipal e uma referência transmasculina no espaço educativo.
Nessa entrevista ele conta sobre sua vivência com a primeira infância, a construção de vínculos, afetos, as potências e desafios.
Olhar para as relações de gênero é refletir sobre a importância da diversidade nos diferentes contextos sociais. Nas palavras de Daniel: Que a diversidade seja a regra e não a exceção!
Carlotas: Olá Daniel. Obrigada por topar essa conversa aqui para nosso jornal. Vamos começar do começo?! Você pode se apresentar para quem nos lê.
Daniel:Sou Daniel Claro, tenho 35 anos, atualmente estou professor da Rede Municipal de Ensino de São Paulo. Trabalhando com a primeira infância a pouco mais de 15 anos, em diferentes contextos e com diferentes abordagens e me permitindo vivências que diretamente compõem parte do que sou (sempre em movimento). Como cidadão, sou um ser inquieto e curioso. Sou também filho, profissional, um artista, um amigo, uma referência transmasculina no espaço educativo, um corpo político, uma fala incômoda muita das vezes, um ponto de partida ou chegada para trocas, aprendizados, escutas e uma pessoa simples, que acredita, que questiona, que se compromete, que luta e que resiste por um lugar de harmonia e bem viver a todos.
Gosto de me colocar como educador, entendendo que esse fazer acontece de forma natural e potente nos espaços plurais. Não me recordo quando decidi ser apenas educando e educador.
Aí já vem a pergunta. E criança é educador? É sobre essas coisas que os pensamentos vagueiam, formulam e experimentam coisas dos fazeres pedagógicos e da vida, já indicando que provavelmente minhas falas perpassam sempre por esses dois espaços de cidadão /educador.
Carlotas: Aqui em Carlotas damos muita importância ao cuidado das relações e um olhar atento à infância, sempre com empatia e respeito. Como você vê a importância desses temas no trabalho com a primeira infância?
Daniel: É, pode até parecer lógico, mas, se não há respeito, afeto e compromisso com as relações e interações que construímos no espaço educativo, corremos o risco de reproduzir ambientes em que estruturalmente não se haverá espaço para o respeito e a garantia de direitos. Especificamente no CEI, um ambiente de sentimentos ambíguos, onde a criança aprende e sente prazer no experimentar, no conviver, no conhecer e ao mesmo tempo sente angústia da despedida, o medo do desconhecido, a pressão para que seja rápida sua adaptação, entre outros sentimentos. Acredito que seja preciso levar em consideração as variadas formas de sentir e passar por esses eventos, em que a criança precisa ser olhada enquanto uma e ao mesmo tempo no coletivo.
É nesse inicio de relação respeitosa, que os vínculos brotam, as permissões acontecem (costumo chamar de convites), para pegar no colo, para dar as mãos, para se alimentar, para brincar junto, para soltar algumas palavras sinalizando uma conversa, um sorriso inesperado com aquele bom dia que já faz parte da rotina e por aí vai.
Na primeira infância observamos, percebemos e somos testemunhas de como a criança absorve o mundo ao seu redor, logo, as relações e interações que a ensinam sobre como ser e agir, devem considerar a criança um ser integral de direitos e de sentimentos, de necessidades e potencialidades. E que sim, irá exigir de nós afeto, sensibilidade, pausa no olhar e consciência nessa interação. E esse movimento do adulto potencializa a prática e as vivências dos bebês e crianças em sua fase única – a Primeira Infância.
Carlotas: Em uma conversa que participamos na Diretoria Regional de Educação (DRE Butantã), você trouxe a temática de ofertar seu corpo como território pedagógico, o que é muito potente. Poderia comentar mais sobre isso?
Daniel: Claro, que lembrança boa daquele encontro, em que justamente me encontrava num momento de sistematização de algumas práticas e ideias. Bem como buscando fazer um resumo de uma trajetória ao mesmo tempo nomeando movimentos da minha prática, numa tentativa de elucidar essas interações, esse processo de troca, ensino-aprendizagem, esse jeito e características do Daniel professor/educador.
Sempre fui um professor de chão, daqueles que chega e a criança sobe em cima, que pegam meu sapato, que puxam meu colar, que mexem no meu cabelo e que já ficou invisível na sala rodeado de crianças, enquanto a coordenadora me procurava. Do tipo que também passa despercebido do estereótipo de professor e de professor de infância menos ainda.
Com o passar do tempo, nesse processo de construção de vínculos e afetos com as crianças, fui percebendo como elementos do meu SER dialogavam com as curiosidades, com o lúdico, com o diferente, com o divertido e os meus acessórios, jeito de falar, contar e cantar, as cores nas unhas e no cabelo. Minhas características e habilidades são elementos que fomentam as interações e me levam a este lugar de ser em alguns momentos o objeto de pesquisa de bebê, de uma criança pequena ( por vezes até de adultos) e que claramente me divirto e me aproprio disso diariamente, bem como me questionando o que e como esse SER que também é pedagógico ,ocupa os espaço e agrega a essa criança.
Situações como relações de gênero, expressões de gênero e equidade de gênero se conectam se pensarmos também nessa referência masculina que tenho sido no espaço predominante feminino e como educamos também a comunidade escolar com essas interações. Trago a ideia do meu corpo justamente porque estamos ressaltando um fato que nesse sentido da discussão é importante, quem eu sou enquanto homem social (meus processos) e quem eu sou enquanto professor/educador homem, atuando como uma das diversas referências que a criança pode ter.
Mas, trabalhar com os pequenos me pede disponibilidade corporal, me instiga a estar largado no chão, com os pés descalços fazendo alguma “arte” , esse também sou eu.
Carlotas: Quais os desafios e potenciais você reconhece em trazer a temática da construção social de gênero na infância?
Daniel: Criar um ambiente respeitoso e potente de discussão, aprendizado e escuta ainda é o desafio da sociedade e da educação. Porque é preciso passar pelo processo. Os documentos que norteiam a educação Paulistana trazem conteúdos, questões e orientam para esses temas: Protagonismo infantil, relações de gênero, multiplicidade de experiências e o brincar como base da aprendizagem, temas relativamente atuais que tem demandado momentos formativos aos educadores, pois se faz necessário estudar, conhecer e compreender questões estruturais, fatores diversos e o processo histórico dessas questões que envolve a criança, a concepção de criança e primeira infância.
Nos vejo nesse momento em que olhamos de onde viemos, percebemos o quanto avançamos e quais outras maneiras podemos pensar em caminhos, em novas formas de dialogar com as inquietações do hoje e do agora. No fazer pedagógico promover mudanças, não esquecendo que educar é processo.
Quero pensar do ponto de partida de que diversidade é regra, não exceção, logo, precisamos continuar a ocupar os espaços que questionam e propõem um movimento ativo, sendo e fazendo parte de um momento da história em que estamos reparando, reconhecendo e construindo uma sociedade para todos, todas e todes. Que nossas crianças possam experimentar serem respeitadas, cuidadas, amadas na infância e sejam os educadores do amanhã.
Vamos pensar nas potências, na possibilidade das crianças terem o espaço educativo como mais uma rede de apoio no seu desenvolvimento integral. Nesse sentido, aquele que cuida também precisa ser cuidado(a) para que seu processo seja mais respeitoso.
Espaços em que o cuidado está presente apoiam o aprendizado da criança em sua convivência com as pessoas, com os animais, com o ambiente e consigo mesma. Ensinar a uma criança com respeito, demonstra que ela também deve respeitar e a permite SER na sua integralidade, menino ou menina, fazendo escolhas que priorizem a cultura de respeito, equidade, sustentabilidade, paz!