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Era uma vez: A criança em perspectiva

“O sonho se faz uma necessidade, uma precisão” – Paulo Freire, 1997

Uma criança nasceu. Uma nova vida chegou a esse mundo. Sua história começou antes mesmo do seu primeiro respiro: desde os primórdios da humanidade até seus mais próximos antepassados, seus tataravôs, bisavôs, avôs e pais. Mas, como mesmo diz a filósofa Hannah Arendt, “quando nasce uma criança, somos todos nós que renascemos, é a humanidade inteira que renasce”.

Isso parece um pouco romântico, ou mesmo utópico, mas é sobretudo muito real! A começar pela mudança na casa da família onde essa criança nasce, invariavelmente ela traz um movimento, uma mudança em muitos aspectos, na rotina e organização da família que a está recebendo. Um novo propósito nasce também: o de ser mãe ou pai, avó, tio, cuidadora, cuidador, educadora etc.

Acredito que quando se é criança passa-se pela incrível experiência de viver em um universo paralelo, ou melhor, com uma perspectiva diferente da do mundo dos adultos, a perspectiva do novo. Onde tudo é mágico, o tempo é infinito e a vida é sempre presente. A cada momento uma descoberta, um som, um objeto diferente. É um período poético, criativo, imaginativo, recheados de sonhos e brincadeiras.

E outro interessante movimento acontece quando nos vinculamos verdadeiramente a essa criança que chegou: recordamos da criança que fomos, e se nos permitirmos, deixamos renascer nossa criança interior. Esse renascer pode ser desafiador para muitos, por trazer lembranças não muito felizes; ou também poderá ser um processo pouco consciente para outros. Mas acredito ser muito necessário.

Para mim esse processo ficou mais intenso quando meu filho completou 7 anos e minha filha 4 anos, quando tive a oportunidade de retornar para a casa onde vivi toda minha infância, em Caldas Novas-GO. Foi umas das experiências mais intensas de minha vida. E essa vivência foi um dos motivos que me impulsionou a escrever esse presente texto.

Antes mesmo de ser mãe, eu já tinha participado de algumas vivências de meditação e autoconhecimento em que eu revisitava minha infância. A casa onde cresci sempre foi presente em meus sonhos noturnos. Mas, depois da minha adolescência eu nunca havia voltado neste local. Assim que fiquei sabendo da oportunidade da viagem, já fiquei super emocionada! Além do desejo de voltar, relembrar, também tinha o desejo de mostrar para meus filhos os cenários da minha infância.

Sei que estava lá para resgatar algo de essencial daquelas memórias e sonhos que sempre recordei. Quando entrei na casa, já naturalmente um tanto diferente e modificada pelo tempo, logo na varanda onde passava horas brincando no chão, minha emoção veio intensamente. Para minha surpresa, quando olho para o Inácio, meu filho de 7 anos, ele também estava emocionado e me disse: “Mãe, eu sei o que você está sentindo, eu sou criança!”. Nessa simples frase ele conseguiu compreender essencialmente tudo o que estava acontecendo naquele momento: minha criança interior estava renascendo…

Inácio também nos faz lembrar que a infância é um momento muito importante, definidor e especial na vida de todos nós. Há inúmeras pesquisas no campo do desenvolvimento infantil e humano que já apontam para esse fato. Que tal então prestarmos mais atenção às crianças e a todas as infâncias? A começarmos por nossa própria criança interior e nossa identidade.

Outro propósito deste texto é também despertar a consciência para as infâncias do nosso país. Sabemos da diversidade de infâncias que existem e principalmente da enorme desigualdade social existente. Vamos então olhar um pouco para os dados que retratam alguns indicadores sociais das crianças no Brasil:

>> O número de crianças e adolescentes de 0 a 19 anos corresponde a 33% da população brasileira.

>> Desta população (crianças e adolescentes de até 14 anos), quase metade (44,5%) vive em condição domiciliar de baixa renda, ou seja, com renda domiciliar mental per capita até meio salário-mínimo. Destes 17,4 % vivem com renda domiciliar mental per capita até ¼ do salário-mínimo.

>> Em 2021 foi contabilizado que 36% das famílias brasileiras vivem em condição de insegurança alimentar.

>> A taxa de mortalidade infantil (menores de 5 anos) são ainda consideradas muito altas frente aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável proposto pela ONU na Agenda 2030.

>> Em 2020, diante do cenário da pandemia, a taxa de abandono escolar dos anos iniciais (Educação Infantil e Ensino Fundamental 1) cresceu em 50%.

>> Neste mesmo ano foram ainda contabilizadas aproximadamente 30.000 notificações de violência e exploração sexual de crianças e adolescentes de até 19 anos.

Os números, apesar de revelarem fatos comprovados e um cenário alarmante, por vezes, podem nos deixar um pouco distanciados diante da realidade. É fato que um retrato como esse revela a urgência do aumento de políticas públicas voltadas para infância e a necessidade do cumprimento das leis que já estão vigentes no país como nosso Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas também, revela um enorme descaso nosso (enquanto sociedade) em relação às crianças e a este período tão essencial para todos nós. E minha tendência é acreditar que a transformação necessária começa primeiro na nossa consciência: enquanto indivíduos, comunidade, sociedade, cultura e humanidade.

Então, resgatar a criança e as infâncias como um todo é imprescindível e sobretudo é um ato de empatia. Reconhecendo “o velho”, como a cultura ancestral herdada por direito pelas crianças, e ao mesmo tempo possibilitando o nascimento do novo, por meio da própria forma das crianças de ser e estar no mundo, representa:

>> A valorização da cultura da infância: as cirandas, as brincadeiras de rua, os contos de fadas, o brincar como central e fundamental em seu crescimento, sua relação essencial com a natureza.

>> A garantia de oportunidades para todas as crianças se desenvolverem integralmente e terem acesso aos seus direitos, como educação, cultura, saúde, moradia e convivência familiar e comunitária, por meio de ações sociais e públicas diversas.

Quando recordamos nossa criança, ressignificamos nossa história não só do passado, mas sobretudo do presente. Temos a oportunidade de colocar em perspectiva nossa própria identidade e por que não nossos sonhos, nossa magia, criatividade e capacidade de “esperançar”, como disse Paulo Freire? A esperança se torna verbo para esse educador da liberdade, ação e vivência. Vamos reescrever essa história? Era uma vez uma criança que nasceu…

Referências:

Dados retirados do documento “Cenário da Infância e Adolescência do Brasil”, elaborado pela Fundação Abrinq neste ano. Pode-se acessar o documento na íntegra aqui.

Imagem da capa: Robert Collins via Unsplash.

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