2020. Inverno, férias, céu azul, sol quente, juntos na mesa para o almoço em família, sempre tão esperado. Eu ouvia atentamente o relato. Não lembro mais o que comia naquele sábado. O tempo nublou. Anestesiada, me levantei, saí da mesa sem rumo e estacionei aquele episódio sei lá onde. Machucada, rugia solto um animal selvagem e endoidecido dentro de mim, buscando um lugar, um nome, um sentido, um porquê, uma resposta, um deixa pra lá, um isso que você ouviu não pode ser verdade. Vozes incaláveis, angústia, aperto no peito, doeram na carne, doeram na alma. Noites acordada, lágrimas brotavam descontroladamente como cachoeira, chegavam rasgando a garganta de dor.
Ainda posso ouvir a voz dele:
“Mãe, aceita…Mãe, se conforma! A realidade caiu com força total. Abrupta. Chega de fingir! Chega de fazer de conta!”
Ele – fruto de um amor sem medidas, amor puro, sincero e inteiro, um SIM grande, de boca cheia, braços abertos, mãos dadas, sangue trocado – me acordava para uma triste verdade. Ele nasceu do nosso amor, desse amor – o nosso filho! Filho de branca com negro. Negro, baiano, atleta. Engenheiro geólogo, formado pela UFBA, carreira brilhante, pai excepcional de, também, duas mulheres admiráveis. Sim, negro, ético, colecionador de amigos e de vitórias extraordinárias para o Brasil, país que ele amava. Nosso filho nasceu na Bahia, honrando a linhagem e a ancestralidade africana paterna. E, para nosso encanto, herdou belos traços: cabelo afro, lábios carnudos, nariz largo, olhar singelo, e dono de um sorriso de lua cheia. Agora, com quinze anos, com o pé no 3º setênio, cheio de energia, anda de skate, joga basketball. Descolado como todos os jovens, seguro de si mesmo, feliz da vida, às vezes, usa boné, mochila nas costas, tênis ou chinelos, com meia. Estuda no Colégio Waldorf, com uma verdadeira missão para a diversidade!
Ele está pronto para conquistar seu espaço no Mundo! Mas o mundo está preparado para lhe dar boas-vindas?
Em 2018, ele foi perseguido dentro de um shopping center. A justificativa do chefe da segurança foi de que ele carregava duas sacolas plásticas. Duas sacolas com potes de plástico que tínhamos acabado de comprar e que ele, gentilmente, carregava para mim. Assim, como ocorrem furtos no shopping, o biotipo era suspeito. Frequentemente, ele ouve nos microfones dos supermercados anunciar as suas características e seus trajes, como se fosse suspeito, para os seguranças ficarem de olho. Já teve sua mochila de roupas, despejada no chão, ao ser abordado por policiais em 2019.
Raramente, frequentamos shoppings. Quando precisamos ir, ele recua. São olhares de reprovação, como se houvesse um padrão físico para consumidor ideal, e ele fugisse a essa expectativa. Em pleno século XXI, ele é um sem-direito! É um presumível suspeito! Essa é a realidade nojenta e cruel. Essa é a verdade!
Numa tarde de junho deste ano, aconteceu o impensável. Ao voltar da casa de um amigo, com a mochila nas costas, já na rua de nosso condomínio, é abordado por policiais de uma viatura. De supetão, já leva uma bofetada na cara. Procurando ficar calmo, ele mostra os documentos, responde a todas as perguntas com civilidade. Ainda assim, foi revistado. Quando perceberam que em um dos bolsos tinha o celular (iPhone), já disseram que ele não poderia ter um iPhone, insistiam que não seria dele. Ele disse aos policiais que não possuía mais a nota fiscal de três anos atrás e que era morador do condomínio. Não foi a primeira vez nem seria a última.
Logo em seguida, nas férias de julho, fomos para o interior de São Paulo. Enquanto ele andava de bicicleta na frente da casa que estávamos hospedados, uma viatura da polícia para e faz perguntas sobre o que ele estava fazendo ali e quem era ele. Dessa vez, os policiais eram educados e justificaram dizendo que a cidade é muito pequena e quando percebem alguém estranho chamam a polícia.
E agora? Estar de posse dos documentos dele, meu, do pai falecido, comprovante de endereço e nota fiscal da compra do aparelho celular, adianta? Ele estará salvo do preconceito, do julgamento, do racismo, da violência física?
Ele, um garoto de bem com a vida, alegre, poucos amigos, muitos colegas, adora música, estuda, pratica esportes, querido por todos, amado pelas irmãs, responsável, companheiro, destemido, e honesto. Infinitas características que, em geral, poucos se interessam em conhecer.
Respeito e expressão são valores pra ele. Mas como respeitar e se expressar com uma sociedade e polícia opressoras? Como se comunicar com uma polícia que parte do princípio que ele é “malandro”? Como se comunicar com uma polícia que não sabe ouvir, e apenas dá ordens usando as mãos? Como conviver com tamanha violência? Como aceitar tapas na cara, socos, nas costelas, de um policial, quando se é amado e educado para o respeito e o amor? Como se tornar um ser humano livre desse ódio e dessa raiva que está querendo grudar e acelerar o coração toda vez que uma viatura da polícia surge! Como ser livre diante de tanta violência e injustiça, se ao andar pelas ruas os olhares o condenam a todo tempo?
Como lidar com a injustiça de ser abordado, e apanhar sem nada ter feito de errado? Apanhar simplesmente pela pele que veste, apanhar por estar voltando sozinho, a pé para casa às 18h30. Apanhar por ser suspeito de algo que nunca fez. Como enfrentar tamanho racismo, sem o direito de andar a pé, de bicicleta ou sozinho, sem ser agredido ou suspeito por causa do seu biotipo?
Como ele poderá caminhar ao léu, aproveitando cada momento, sentindo as delícias de tudo que é simples, como caminhar pelo bairro ou conversar com amigos na calçada de casa? Como desfrutar da tal liberdade física? Como se conformar com tamanho aviltamento? Como aceitar as diferenças nos olhares e nas atitudes quando está sozinho, comigo ou com amigos brancos?
Daqui, sigo como mulher e mãe, honrando todo meu matriarcado ancestral, de mãos dadas com a espiritualidade, cuidando da cria com exemplos de retidão, educação, carinho, amor, proteção, respeito, admiração e fé. Mas também, com a minha resistência a viver, muita coceira na alma, coragem, indignação e fúria, que não me deixarão de braços cruzados, muito menos paralisada. Jamais me sufocarei com tamanhas porcarias e infinitas injustiças!
Cadê as consequências? Quem cuida da formação desses policiais? Se a sociedade não mudar, a polícia não mudará. Não existe essa entidade abstrata chamada sociedade. A sociedade somos nós!
Não devemos viver num mundo onde existam um “nós” e um “eles”, onde as pessoas são tratadas de forma diferente por causa da sua cor de pele, onde o racismo está sendo normalizado. Isso é desumano.
Precisamos consertar isto. Todos nós! Precisamos mudar esse mundo, juntos. Mesmo que isso não afete o seu, pessoalmente. Estamos cansados desse cinismo, desse racismo!
Não é dever de meu filho entender que o mundo é assim mesmo. É nosso dever lutar por um mundo livre dessa doença – o preconceito racial.
* Ilustração da capa por Liuna Virardi.