11 graus. Saio de casa com minha nova mochila, uma bota impermeável, segunda pele, casaco de lã e afundada num cachecol fofinho. Pareço um colchonete.
Entro no metrô e começo a suar de calor. Tiro o cachecol, tiro a mochila, tiro o casaco. Está quente demais, não devia ter colocado tanta roupa. Saio do metrô e o vento paralisa minhas bochechas. Tá frio mesmo, ainda bem que eu vim agasalhada.
Enfim, cheguei em Londres.
As ruas são vivas e convidativas ao diverso, ao inesperado. Cabelos coloridos, gente com muita roupa (eu), ônibus vermelhos, cafés e flores, gente com pouca roupa (Felipe), ruas estreitas, passagens quase invisíveis e prédios que guardam muita história.
Caminho até a universidade para a palestra de boas vindas. Centenas de jovens se organizam educadamente e mais pareciam recém saídos de um banho demorado. Frescos, cheirosos, cabelos hidratados e roupas impecáveis. Eu: colchonete.
A insegurança, minha velha companheira, ameaça retornar com a ousadia de quem emite sua opinião sem ter sido consultado. Como você veio parar aqui? Como você foi aceita? Será que vai conseguir acompanhar? E esse inglês brasileiro, como vai esconder o sotaque?
Perguntas sem respostas. Simplesmente porque não precisam de uma.
Mas foi ai que me percebi, uma vez mais, vulnerável. Ao medo de falhar, de decepcionar, de não pertencer, de não dar conta. Ao medo de parecer frágil demais. Nessas horas, a gente se esquece de quem é, do que sonhou e desejou. Se esquece, principalmente, do que já realizou.
Paro, respiro, tiro o casaco. Acho que o coração está se reaquecendo. Sigo até a biblioteca e lá tenho o meu primeiro grande encontro com as minhas mais profundas emoções dessa nova fase. Admiro deslumbrada as prateleiras de sabedoria infinita, a escada caracol que parece ligar a Terra ao Céu e a claridade que entra por todos os vidros como um sinal do caminho pra libertação. Agradeço.
Agradeço e agradeço. Se o Felipe estivesse junto, certamente diria: “Lá vem você falar em privilégios”. Mas não teria como não falar, afinal somos a primeira geração de nossas famílias que recebem o imensurável privilégio de cursar um mestrado internacional em uma universidade histórica. Isso sem contar os fatores culturais, sociais e políticos do nosso país, que nos conduzem a um patamar de outros tantos privilégios incontáveis.
Escolho um dos livros* recomendados pelo professor e me acomodo delicadamente em uma área silenciosa para iniciar a leitura. Logo nas primeiras páginas, me surpreendo com a afirmação de que a vulnerabilidade é uma das premissas dos direitos humanos. Mais adiante, o autor complementa dizendo que experimentamos a felicidade de maneiras diversas, mas a vivência da dor, da humilhação e do sofrimento pode ser percebida de maneira bastante equivalente por muitos de nós.
A vulnerabilidade, portanto, é um dos principais fatores que atravessa nossa condição de seres humanos e nos aproxima em nossas diferenças e possibilidades. A vulnerabilidade é – também – uma porta aberta à prática da empatia, que nos permite acessar a nós – e o outro – com a profundidade que as relações humanas merecem – ou deveriam merecer.
Entendi como um sinal. Um sinal de que não é preciso combater minha vulnerabilidade, pois ela me faz quem eu sou e me relembra – a todo momento – da minha humanidade.
Ao contrário, devo acolhe-la e acomodá-la em seu devido lugar, com o compromisso de que ela sempre vai me aproximar, impulsionar e conduzir.
Nunca me paralisar.
*Vulnerabily and Human Rights, Bryan S. Turner
Esse artigo foi previamente postado no site da Think Twice