Era início de 1992, eu tinha 7 anos, e estava animada para começar o ensino básico, na primeira série. Eu estava nervosa e com medo de não dar conta de tudo, de não conseguir aprender. Eu sempre gostei de estudar e, mesmo com pouca idade, sabia que aquela seria uma etapa importante que estava começando.
Era domingo à noite, minha mãe tinha acabado de refazer as minhas tranças. Eu pedi para ela fazer as “trancinhas caídas”, bem fininhas, para o meu cabelo ganhar movimento, isso demorou o dia todo, mas ela fez, uma a uma, e só terminou a noitinha. Meu pai estava passando o uniforme de estreia – o uniforme da escola tinha a camiseta branca e uma bermuda vermelha. Foi nesse momento, que meu pai, como numa conversa informal disse:
“Agora filha, você tem que ser duas vezes melhor do que os outros, e se esforçar duas vezes mais, porque, mesmo assim, vão duvidar da sua capacidade e da sua inteligência.”
E esse peso eu carrego até hoje…
Não tenho ressentimento com o meu pai, por ele ter falado isso, tenho ressentimento por vivermos numa sociedade que nos cobra isso, porque não foi só meu pai que disse, não é algo particular da minha criação.
Os pais de alguns amigos pretos também os instruíram assim. Na introdução da música do Racionais “A Vida é Desafio” [do álbum – 1000 Tretas 1000 Trutas] diz a mesma coisa: “Desde cedo a mãe da gente fala assim: ‘Filho! Por você ser preto, você tem que ser duas vezes melhor'”.
Assistindo uma série norte americana chamada Scandal, em que a protagonista é uma mulher negra, há uma cena em que o pai dela faz uma pergunta:
– Eu treinei você para ser o que?
E ela responde:
– Duas vezes melhor.
Trago esses fatos para dizer que esse discurso NÃO É COINCIDÊNCIA.
E se os pais precisarem continuar fazendo essa educação para as crianças negras, nada muda! Precisamos pensar em como o racismo atinge a autoestima das crianças negras e trabalhar para que estereótipos racistas sobre falta de capacidade não nos defina mais.
Esse tipo de frase que muitos de nós, adultos negros, escutamos dos nossos cuidadores quando éramos crianças, era a expressão mais sincera de uma militância preta que nos permitiu sobreviver. Se estamos vivos hoje, esse discurso de nossos pais pode ter feito toda a diferença.
Nossos pais, por terem vivido situações extremas de racismo e terem passado pela violência da ditadura militar, numa tentativa de nos preparar para a “guerra”, nos educavam dessa forma.
Muitas vezes, eles não falavam do racismo, na intenção de não causar revoltas. O objetivo era nos preparar para fugirmos o máximo possível de situações que pudessem nos colocar em perigo ou nos expor ao racismo.
– “Tira esse boné”
– “Não anda com a mão no bolso”
– “Não saia de toca na rua”
– “Se ver a polícia, não corra”
– “Ande com boas companhias”
– “Não faça nada de errado que eu vou descobrir”
– “Não arrume confusão na escola”
– “Nunca ande sem documentos”
– “Ande longe das prateleiras”
– “Não vá desarrumado”
– “Corte o cabelo”
…e tantas outras frases, que eram a expressão mais sincera de proteção das nossas vidas.
Se você é um adulto branco, está lendo esse relato, e não sabia dessa rigidez dos pais de crianças negras, significa apensas uma coisa: algumas peles recebem privilégios e outras julgamento.
O que podemos fazer: acabar com o racismo. Os pais de crianças negras só vão parar de fazer esses alertas quando souberem que seus filhos não correm risco de vida por serem apenas quem são: crianças e jovens negros.
Eu agradeço os meus pais por estar viva e retribuo a educação que eles me deram propondo uma educação consciente e combativa para todas as crianças negras, no sentido de preparar nossos filhos não apenas para sobreviverem, mas também para viverem.
*Imagem da capa: Lívia Abreu via Behance